30 de agosto de 2014

Para onde vão as nuvens?


Era uma vez uma menina que queria se juntar de alguma forma à cor do céu. Aquele céu, aquela imensidão azul era tudo o que ela conhecia. Ela sabia que jamais poderia tocá-lo, nem provar as nuvens, mas só de olhar já sentia o gosto doce na boca. Para ela o céu era como um painel pintado, ou o mar, ou o Rio de Janeiro que continua lindo. Todas coisas em que ela nunca havia tocado. Todas coisas que ela nem podia afirmar existirem, pois nunca as vira de verdade. Por mais que ela soubesse existir todo um Universo lá fora, eram coisas que ela supunha que jamais veria. Para ela, todo o mundo, tudo o que existia, eram os livros, as flores, e as pessoas da sua família. As coisas que já tinha tocado, provado, sentido.  Ali, deitada, imaginava como seria o toque de uma nuvem, o cheiro, se o sabor seria tão doce quanto imaginava. Quando olhava bastante, quase podia sentir. Naquele dia específico, havia uma nuvem enorme no céu. A menina se derreteu em uma poça de silêncio enquanto criava rostos de monstros nas nuvens. Contou um, dois, quatro, sete monstros. Todos formando um outro monstro maior. Via olhos, bocas, braços e dentes por todo lado. Mas essa era uma tarefa um tanto quanto estranha porque assim que acabava de formar um monstro, ele sumia e dava forma a um outro diferente. E ela ficou lá, tentando olhar com muita força para ver se assim conseguia prender os monstros do jeito que estavam. Por fim desistiu e ficou apenas observando os pedaços de nuvens se dissipando no ar. Se você já viu uma explosão contida, sabe como elas fazem isso. Se nunca viu, pense em uma explosão acontecendo ao contrário. Se você nunca parou para olhar, é preciso explicar que as nuvens se dissipam de fora para dentro em adjetivos como contrair, palavras inventadas como deseclodir, e afins. Falando assim, parece demorado, mas não é; num segundo elas estão lá, no outro se encolheram até desaparecer. De qualquer modo, a menina já se sentia aflita de tão rápido que elas sumiam. Algum tipo de força guardada dentro dela se manifestava, tentando de alguma forma convencer as nuvens a continuarem paradas ali, uma ânsia implícita de guardar ou ao menos prolongar aquele momento um pouco mais... De repente começou a se perguntar para onde as nuvens iam quando sumiam. Será que elas eram sugadas para o outro lado do mundo?  Será que essas eram as nuvens do outro lado do mundo que foram sugadas para cá e precisavam voltar para casa? Será que elas se dividiam em minúsculas partículas e viajavam sem rumo?
Num impulso a menina saiu correndo para dentro de casa para apanhar papel e lápis para desenhar um último monstro, mas quando voltou já não havia mais nuvem alguma. O céu estava tão azul quanto uma folha de papel azul. Tão azul quanto um céu azul sem nuvens. 

18 de julho de 2014

O cara que a fez se sentir especial

Um dia, de repente, ela se lembrou dele. Fazia tanto tempo...
Ela estava na varanda sentada sozinha com seu livro, como costumava ficar, olhando a vista e esvaziando a mente. Naquela época ela era nova demais. Por algum motivo não conseguia enxergar o quanto era bonita, e o quanto era legal. O garoto que ela namorava estava na sala, rindo de qualquer coisa idiota com os amigos também idiotas. Ela ainda não sabia, mas ele não sabia cuidar dela como deveria. Ele não a fazia sentir-se especial. Ela não tinha notado, mas fazia tanto tempo que ele não a fazia rir... Porque ele não era divertido, e não fazia ela se divertir. Mas ela estava tão acostumada a ficar sozinha que não percebia que algo estava errado, muito errado. Porque ele nunca queria fazer nada com ela. O único tempo que eles tinham juntos era sempre tão sem graça, tão rotineiro. Mas ela ainda não sabia disso, porque nunca tinha se divertido dessa forma com ninguém. 
Naquele dia ela pensava em cavalos, pensava em liberdade, enquanto olhava os montes de vários tons de verde e queria tanto, tanto fazer parte daquilo... Ela estava perdida em sonhos em que o vento batia em seu cabelo, tão perdida que nem notou quando ele chegou e sentou-se ao seu lado, até ele perguntar porque estava tão sozinha. E ela poderia responder tantas coisas diferentes! Poderia dizer que não tinha amigos, que não se interessava por nada do que os outros estavam fazendo e que só queria... Correr, sem ter para onde ir. Podia dizer que era porque queria a companhia de alguém específico, ou que só queria que ele se importasse um pouco mais... Mas ela não queria incomodá-lo com isso. Era engraçado como ele estudava a expressão dela enquanto ela pensava, e em como prestava atenção a cada movimento que ela fazia. Era engraçado como ele prestava atenção nas poucas palavras que ela dizia, e era engraçado como de todas as coisas que ele poderia estar fazendo, ele estava ali falando com ela. Então, ele a puxou para a grama, brincou com ela, lhe ensinou jogos, e a fez sorrir. 
Ele lhe fez companhia durante a tarde toda, e o namorado nem notou sua ausência. À noite, levou-a para ver as estrelas. Não importava onde ele ia, ele sempre a convidava para ir junto, e sempre falava com ela, sempre prestava atenção ao que ela dizia. Enquanto o namorado dela conversava com seus amigos, e ficava sempre distante, ele sempre estava lá para lhe escutar, mesmo quando as outras garotas, mais bonitas e mais legais estavam por perto. Ele olhava dentro dos olhos dela por mais que três segundos. Ele lhe fazia bem. 
Mas ele nunca lhe pediu com palavras uma chance de mostrar que ela era especial, e ela, tão afogada em sua fidelidade, não conseguia perceber que queria dar essa chance a ele. Às vezes ela olhava para sua pele morena, para seu jeito doce, e tinha vontade de ficar por mais tempo. Mas esse era um pensamento que se esforçava para afastar rápido. 
Só hoje, tantos anos depois, é que ela de repente pensou que enquanto insistia em alguém que não lhe acrescentava nada, um outro alguém reconhecia por trás daquelas lentes a pessoa incrível que ela era. Alguém a via como ela realmente era. E ela nunca deu a chance para que esse alguém a fizesse feliz. 

A luz entrava da janela distante

A luz entrava da janela distante, em forma de círculos coloridos que se dissipavam lentamente no ar, como se eles estivessem em uma dimensão diferente; eles tentavam eternizar aquele momento como se fosse uma foto com efeito psicodélico. Eles sabiam que aquele momento logo passaria, e que minutos passavam rápido demais. Sabiam que daqui a pouco ele teria que ir, e que daqui a pouco teriam se passado anos e anos... E que nem sempre a vida dura tanto quanto gostaríamos. 
Mas aquele momento, aquele tão pequeno e frágil momento, era deles e não existia nada além disso. Ele olhava a curvatura dos cílios dela, e ela tentava descobrir coisas no rosto dele que ninguém mais soubesse. Eles estavam deitados na cama do quarto todo branco, sem dizer nenhuma palavra, pensando em milhões de coisas diferentes. 
Enquanto os olhos acinzentados e cheios de pintinhas dela tentavam ler a alma dele, ele pensava que nem todo o tempo do mundo seria suficiente para estar com ela. Ele acariciava o rosto dela, bem na maçã do rosto, como se dissesse que a protegeria de qualquer coisa que viesse, e ela contava quantos riscos tinham os lábios dele. Talvez aquele fosse um dos momentos em que nem mesmo fazer amor consegue expressar o quanto são felizes por terem um ao outro; então ficam lá em silêncio, parados, apenas se olhando e tentando fazer durar... 
Ele era o amuleto dela, a sua força, por quem ela lutaria e pra quem ela voltaria ao final de cada voo, e ela era a sua pequena, aquela que ele esperava voltar, de quem ele cuidaria, e a quem ele dedicaria todo amor que pudesse sentir. Ela era sua borboleta, e ele era o jardim dela. 
Não importava quantos séculos se passassem, ou quantos quilômetros estivessem entre eles, o amor dos dois era palpável, mais real até do que eles mesmos, mais material do que seus corpos, mais profundo que um abismo. Mesmo quando ele fosse embora, e eles não pudessem mais se tocar fisicamente, ainda assim o amor deles seria tocável, e ainda assim eles estariam juntos de uma maneira que é impossível explicar.
Ela beijou suavemente os lábios dele, tentando transferir todo o amor e carinho do coração dela para o dele, e ele sentiu. De alguma forma ele sentiu. Quando eles estavam juntos, aconteciam coisas fisicamente impossíveis, exatamente como a mágica em que a gente acredita quando é criança. Quando eles estavam juntos, coisas lindas subitamente aconteciam: estrelas caíam do céu, a luz desmanchava-se em colorido, apareciam círculos de luz furta-cor no ar, dançando e rodopiando, fogos explodiam no céu escuro. E quando eles estavam longe, todo o universo conspirava para que eles se aproximassem. 
Naquele momento em que ela descansava a cabeça no peito dele, sentindo o coração dele bater sereno e ritmado, e ele organizava alguns fios do cabelo dela que estavam fora do lugar, tudo estava certo. Não existiam problemas , não existia errado. O mundo era deles e eles viveriam aquela história da maneira como quisessem.
Infelizmente nas melhores histórias de amor o relógio badala, e, repentinamente, chegou a hora dele ir. Ele se levantou e foi até a porta, e ela foi atrás, o vestido branco dançando junto com o corpo. Ele se virou para dizer adeus, olhou fundo nos olhos dela e prometeu que voltaria. Ela o beijou desesperadamente, sabendo que aquele não seria o último beijo, apesar de ser, temporariamente. Seu cabelo fazia cosquinha no pescoço dele, e ela apertava sua nuca com a ânsia de quem vai saltar de um lugar alto. E ficaram ali, se beijando eternamente, até se separarem ao mesmo tempo e ele andar para longe com os cabelos desgrenhados e um sorriso gigante no rosto. Os pés dela deslizaram pelo chão claro, as pedrinhas da sua tornozeleira brilhando na luz tênue que entrava pela janela distante. Seus pés foram pisando cada vez mais de leve, até não tocarem mais o chão, e ela voou. 

29 de maio de 2014

O dia em que ela foi coisa

A lua estava alta no céu. As pedras estalavam sob o coturno enquanto andava coberta por sombras. As luzes piscavam rangendo ritmicamente, as vozes das pessoas ovacionando ecoavam ao longe. Notas graves alternando com agudas, a sensação de que um tipo de maquinaria estava sendo acionada, que uma caixinha de música estava ganhando corda...
Seu corpo era todo cores, cores que se desmanchavam em outras, passeavam por tons e voltavam a encaixar-se; que se enrolavam em volta da cintura, das coxas, da panturrilha... Cores que explodiam do umbigo e iam do pescoço às costas. Matizes que a abraçavam, a devoravam, colavam a ela como se fossem sua própria pele. Os olhos pintados de cintilante, brilhando suaves na pouca luz, os cílios batendo como asas longas de borboletas, derramando brilho pelas bochechas róseas, as penas que adornavam o cabelo flutuando acariciadas pelo vento.
Enquanto caminhava ao longo da tenda, pessoas entravam e saíam de suas casas, riscos de lantejoulas passavam correndo, o cheiro doce e gorduroso cobria o ar, gritos eram trocados aqui e ali. Pelas janelas das casas, mulheres se maquiavam, calçavam meias, abotoavam malhas. Se o leão insistisse naquele barulho, era porque ia chover. 
Mas ela, escondida no escuro, sob a proteção de inúmeras lendas, ouvia de longe o espetáculo. Observava as sombras coloridas de seu próprio corpo, e pensava que naquele instante transcendia o ser, que naquele instante não era nem gente, nem bicho; era mistura dos dois, mistura do mundo, mistura dos risos de jovens e velhos, mistura de sonhos com esperança e melancolia, mistura da vontade de conhecer o mundo lá fora com a sensação de que pertencia a algo. Naquele instante não era pessoa, mas sim o próprio Algo. O Algo que tocava as pessoas em lugares que elas nem sabiam existir. Que despertava sensibilidade, que criava comoção, surpresa e espanto. O Algo que chocava, o Algo que fazia as pessoas quererem se sentir parte também.
Tudo isso ela pensava enquanto via pelo espelho os filetes de água pintada escorrendo, a magia derretendo, as cores do batom se apagando. Tudo isso ela pensava enquanto puxava os grampos, penteava os cabelos longos, encarava a pele sem cor. Enquanto despia a pele estampada, deixando-a cair aos pés. Enquanto isso fazia, pensava que deixara agora de ser coisa, que agora era novamente alguém. Até o por-do-sol de amanhã. 

28 de maio de 2014

A lenda da estrela viajante

As estrelas estão lá há milhões de anos, muito mais anos do que jamais conseguiremos contar, muito mais anos do que jamais poderíamos imaginar. É um universo grande, amigo. 
Antes das estrelas nascerem, só existia o Verbo, e tudo o que existe além do Verbo, nasceu depois das estrelas. Imagine todas as coisas mais lindas que já viu na vida, e depois imagine que as estrelas viram todas essas coisas nascerem. Elas são como milhares de olhos bordados em veludo escuro, observando atenciosamente a poeira do universo girar e tomar forma. Existem muito, muito mais coisas lá em cima do que jamais poderíamos saber. Por esse motivo, algumas pessoas amam as estrelas, por guardarem eternamente seus milhões de segredos; e por isso eu as odeio, pela ideia de que nunca viverei tempo suficiente para entendê-las. Sou só um velho, sentado na beira do caminho do tempo, esperando, contando pontinhos no céu com a total convicção de que é inútil. As estrelas são o ladrilho do tempo. Eu, um grãozinho de poeira que flutua sem rumo até se perder na vastidão do todo.
A maioria das pessoas têm medo das estrelas, eu acho. Ou da beleza. Já vi o céu muitas vezes, quando era menino. Mas o céu me assustou, e eu parei de olhar. Há pouco tempo, quase sem querer, olhei para cima de novo, reencontrei minhas velhas amigas, e a primeira coisa que pensei foi: "como as pessoas podem ter um espetáculo tão lindo todas as noites, sem ter que dar nada em troca, e mesmo assim não saem para olhar?". Imaginei que se todas as pessoas fizessem ideia do quanto aquelas malditas são bonitas, elas desligariam suas televisões, parariam tudo o que estivessem fazendo, mesmo que fosse amor, e fariam um minuto de silêncio para contemplar as estrelas e se maravilhar com a beleza das coisas que estão tão acima de nós, do nosso controle. 
Dizem que, há muito tempo atrás, havia um garoto que fazia exatamente isso. Todos os dias à noite ele parava tudo o que estava fazendo, e ia conversar com as estrelas. Ele as conhecia não como os astrônomos conhecem; aquele garoto tratava as estrelas como velhas amigas. Ele contava estórias que inventava para elas, às vezes ficava em silêncio, às vezes chorava, porque coisas assim tão grandes e tão bonitas fazem isso com a gente. Às vezes ele se sentia grande, por conhecê-las tão bem; às vezes se sentia pequeno, por elas serem tantas e tão antigas. Às vezes as estrelas contavam histórias para ele também. 
O garoto entendia a importância elas, e elas sabiam disso. Por isso as estrelas foram lentamente se apaixonando pelo garoto, e o garoto passou a amar as estrelas. 
Elas ficavam lá em cima, silenciosas, sussurrando juras de amor que só ele podia ouvir. E ele, lá embaixo, ficava cada vez mais obcecado por tocá-las. Durante o dia, ele inventava mil maneiras de chegar até elas. Tentou construir a escada mais alta do mundo, tentou encher milhares de balões e se prender a eles, tentou saltar o mais alto que podia, tentou nadar bem longe no mar, até o ponto que o mar encontraria o céu, tentou escalar os picos mais altos que conhecia, tentou entrar dentro do telescópio, tentou até mesmo se colocar de cabeça pra baixo e dar impulso com os braços, pensando que assim poderia cair de pé no céu, mas nada disso funcionou. As estrelas amavam-no em silêncio, declarando poesias mudas ou canções de ninar para ele dormir, mas o garoto, sem mais ideias, estava tão triste que nada do que elas faziam adiantava. Ele permanecia lá sentado, com os braços cruzados em volta dos joelhos, em um silêncio que estremecia a Terra. Por causa da tristeza do garoto, todas as estrelas foram se entristecendo também, uma a uma foram ficando apagadas e sem brilho. As estrelas choravam lágrimas invisíveis de amor. O Verbo ouvia o choro das estrelas e ouvia o silêncio ensurdecedor do garoto, e seu coração sentia pena do que ouvia. Então o Verbo, que é o único capaz de chamar cada estrela pelo nome, pois foi Ele quem as criou, teve uma ideia. Criou uma estrela viajante, que cruzaria o céu de tempos em tempos, e desceria na Terra como humana para que eles pudessem ter uma única noite de amor. Desse dia em diante, o garoto, jovem e sonhador, carregando montes de esperança nas costas, corre o mundo todo esperando ela aparecer, como um risco no céu. Costumamos chamá-la de estrela cadente, mas o Verbo deu um nome para ela, um nome que só o garoto e Ele sabem. 
E eu, eu sou apenas um velho, sentado no caminho do tempo, esperando ela aparecer. Milhares de fios de ouro esvoaçando em volta do rosto pálido e luminoso. Vivo esperando o dia em que ela virá outra vez, e me levará embora com ela...

27 de maio de 2014

Amar pessoas que não existem

E quando eu penso finalmente ter acordado percebo que é tudo um sonho. Porque isso é o que eu faço de melhor – sonhar. Sonhar que você está comigo, e que não está. Sonhar que você é perfeito, como já deveria saber que não é. É esse o meu problema. Deve ser. Que eu sonho tanto com você de um jeito, pra depois perceber que é tudo mentira. E que eu estou indescritivelmente apaixonada por um sonho. E então não tenho nada a fazer. Estou apaixonada por você, e você simplesmente não existe. E eu te imagino como quero, e penso em você do meu jeito. E você simplesmente nunca existiu. E eu estive te inventando esse tempo todo. Sempre te imaginei me dizendo aquilo que eu esperava, e adivinhando aquilo que eu pensava, e sempre te amei por isso, sem nunca perceber que na verdade você nunca existiu. Posso dizer que estou em choque por descobrir isso. Por descobrir que a maioria do tempo que passamos juntos foi quando eu trazia você pra perto de mim. E agora o tempo em que eu estive amando só me ensinou algumas coisas e me trouxe algumas coisas que haviam sido perdidas com o tempo, e eu finalmente entendi. Entendi que jamais poderia amar você, porque você só existe na minha cabeça. E é por isso que embora longe você esteja sempre perto. É por isso que embora te odeie, você me perturba até que eu te ame.
Eu já não te escrevo mais como antigamente, não sonho sempre com você rindo, e não sei se eu vou te ver amanhã. Mas eu vou te ter sempre, ainda que isso estrague tudo. Ainda que eu ouça que essa não é a coisa certa. Como dizem, o coração tem razões que a própria razão desconhece. Uma coisa posso garantir: que foi real.
Agora pare de ser a minha sombra, já sei quem é você, e não vai haver outro jeito de se esconder, nem de fugir. Agora sei por que você nunca vai me deixar. Porque você sou eu.
Então escute-me: se um dia for dedicar sua vida a algo, tenha certeza de que isso é real. Porque eu apostei todas as minhas fichas em algo imaginário. E então? Como poderia me sentir? Não mal, porque isso anula alguns medos. Mas me assusta saber o quanto eu sou boba e medíocre em acreditar em algumas coisas que eu mesma invento. Aprendi a inventar já quando nasci, e daí perdi a noção de quando parar. Me lembre de inventar coisas que nunca me deixem tristes e nunca me tragam lembranças. Me lembre de inventar algo que quando se for, leve tudo consigo, e me deixe como se nunca houvesse existido. Ou que ao menos me deixe outra invenção pra me distrair. Me lembre de fazer as coisas do meu jeito já que não se pode controlar.
Mas eu decidi uma coisa. Viver pra você, mesmo que eu não te conheça, ou que eu conheça mas ainda não tenha percebido quando nossos corações se falam. Sabe como eu quero que você seja, quando for de verdade? Quero que você seja normal e me magoe. Mas quero que você me leve pra ver as estrelas, e diga coisas no meu ouvido. Quero que você me chame pra dançar, e me rodopie no salão que é a vida. Quero que você me revolte, e quero que você me abrace. Sabe como eu quero que você seja? Quero que você me compreenda. E mesmo que não possa me dar bons conselhos, que apenas saiba me ouvir, e apenas com seu silêncio saiba como me dizer o que devo fazer. Ou que é decisão minha. Quero que você seja espontâneo e imprevisível. Quero ser como um nada em suas mãos, e quero esquecer do mundo por você. Quero poder confiar em você, para que mesmo se eu me perder, você nunca me faça mal. E você nunca precise de respostas muito exatas, ou que você saiba me fazer sorrir. Eu quero alguém que simplesmente não existe. Eu quero alguém que mexa comigo. Eu quero alguém que saiba como me surpreender, e alguém que ao mesmo tempo não precise da minha vida pra viver. Assim como eu não quero precisar de ninguém pra ter a minha. Quero alguém que eu possa admirar, que me faça feliz só por existir, que me faça amá-lo muito além do que o meu enorme orgulho pode ir.  
Alguém mais como um sonho mesmo. Que me faça serenata e que faça valer a pena o meu tempo gasto. Alguém que me faça poemas, mas que não me mate no final. E não alguém que suma e reapareça sem avisar, só pra me dizer mais uma vez o que já estou cansada de saber: que toda essa droga não passou de coisa da minha cabeça. E agora eu estou simplesmente escrevendo, e ouvindo algumas músicas legais. 
Meus problemas meio que começaram quando eu realmente fiquei sozinha. Quando eu realmente me senti sozinha e desprotegida no meio de estranhos. Começou quando eu vi as pessoas felizes e me penalizei por não sei tão feliz quanto elas. Começou quando eu tive tanta pena de mim mesma, que pensei estar fazendo a coisa certa. 
Não tão difícil, mas horrível. Extremamente. Quando eu percebi que tudo estava voando com o mais tenro vento, então eu me tranquei na minha ostra. E eu fiz tudo o que eu podia, mas eu não pude. E agora eu estou completamente sozinha. Não porque perdi alguém, mas porque perdi um sentimento. Isso me arrasa. 


Agosto, 2010

26 de maio de 2014

Sobre as rosas

Ainda lembro dos seus olhos de sonhos enquanto podava suas rosas. Gotas de suor vez por outra pingavam na grama. Mas isso era na época em que ela ainda cantava, e provavelmente o som da sua voz fazia as rosas acordarem, desabrochando preguiçosas para lhe cumprimentar. 
Era setembro quando gotas salgadas caíram no chá, e ela juntou mais uma na sua coleção de cicatrizes. Todos os dias trazia uma nova rosa para o centro da mesa, mas nenhuma delas lhe trazia mais conforto. As rosas murchavam, secavam, e eram substituídas, e ela só conseguia pensar que era uma rosa colhida também. Gotas diferentes pingavam na grama agora, quando um silêncio ensurdecedor abraçava a roseira. Um oceano de dores diferentes a submergia constantemente, e as lágrimas viraram cristais de gelo assim que saíam de seus olhos. Lentamente planos eram desfeitos, e folhas verdes ficavam marrons. Pétalas rosa-avermelhadas contrastavam com a grama num lindo tapete de coisas mortas, mas não tinha mais importância. 
As rosas abriam, procurando sua voz, e desmanchavam de tristeza ao nada encontrar. Aos poucos foram empalidecendo, o vermelho ardente tornou-se rosa sem graça, e as folhas anêmicas furadas por insetos, tornaram-se amareladas. Todos os dias ela deixava o chá esfriar antes de sequer sorver o primeiro gole. As mãos envolviam a xícara gelada, e o olhar sonhador tornou-se vago, procurando em um tipo de realidade paralela algo que nunca encontravam. Finos fios claros apareceram misturados nos cachos castanhos, e tudo perdia a cor. 
De vez em quando acordava com os sons de pesadelos que não eram seus, e as rosas não tinham mais por que nascer. O viço dos galhos espinhentos esvaía-se a cada dia. E ela colecionava cicatrizes. 
Muito tempo já passou desde que a roseira foi cortada, seus galhos inertes no chão, enrolados em suas próprias folhas pálidas, uma rosa seca aqui e ali. Neste dia, tudo o que lhe era mais caro na vida tombou. Foram-se as flores, restaram os espinhos, dilacerando suas antigas cicatrizes, criando novas. Quem sabe o que houve à roseira depois de ser cortada?
Ela tentou fazer novas mudas, mas todas morriam. De vez em quando soltava uma nota tímida, e por um delicado instante quase podia mesmo voltar a ser a mesma pessoa de antes. Esses instantes, porém, duravam pouco demais, ainda menos que as suas mudas. As lágrimas se misturavam ao suor quando tentava em vão juntar os seus pedaços. Por fim deixou de lado a tarefa inútil de cultivar rosas e agarrou-se à mais simples esperança de que um dia as lágrimas secariam, e secaram. Não sei dizer se algum dia chegou a ser feliz, sei que roseira nunca mais plantou.
Um dia, quando esperávamos o chá ferver, me disse que o mais importante na vida era saber recomeçar. E eu sabia que ela realmente tentava. Mas para mim não fazia sentido viver em mundo que a tratava tão mal. 
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