29 de maio de 2014

O dia em que ela foi coisa

A lua estava alta no céu. As pedras estalavam sob o coturno enquanto andava coberta por sombras. As luzes piscavam rangendo ritmicamente, as vozes das pessoas ovacionando ecoavam ao longe. Notas graves alternando com agudas, a sensação de que um tipo de maquinaria estava sendo acionada, que uma caixinha de música estava ganhando corda...
Seu corpo era todo cores, cores que se desmanchavam em outras, passeavam por tons e voltavam a encaixar-se; que se enrolavam em volta da cintura, das coxas, da panturrilha... Cores que explodiam do umbigo e iam do pescoço às costas. Matizes que a abraçavam, a devoravam, colavam a ela como se fossem sua própria pele. Os olhos pintados de cintilante, brilhando suaves na pouca luz, os cílios batendo como asas longas de borboletas, derramando brilho pelas bochechas róseas, as penas que adornavam o cabelo flutuando acariciadas pelo vento.
Enquanto caminhava ao longo da tenda, pessoas entravam e saíam de suas casas, riscos de lantejoulas passavam correndo, o cheiro doce e gorduroso cobria o ar, gritos eram trocados aqui e ali. Pelas janelas das casas, mulheres se maquiavam, calçavam meias, abotoavam malhas. Se o leão insistisse naquele barulho, era porque ia chover. 
Mas ela, escondida no escuro, sob a proteção de inúmeras lendas, ouvia de longe o espetáculo. Observava as sombras coloridas de seu próprio corpo, e pensava que naquele instante transcendia o ser, que naquele instante não era nem gente, nem bicho; era mistura dos dois, mistura do mundo, mistura dos risos de jovens e velhos, mistura de sonhos com esperança e melancolia, mistura da vontade de conhecer o mundo lá fora com a sensação de que pertencia a algo. Naquele instante não era pessoa, mas sim o próprio Algo. O Algo que tocava as pessoas em lugares que elas nem sabiam existir. Que despertava sensibilidade, que criava comoção, surpresa e espanto. O Algo que chocava, o Algo que fazia as pessoas quererem se sentir parte também.
Tudo isso ela pensava enquanto via pelo espelho os filetes de água pintada escorrendo, a magia derretendo, as cores do batom se apagando. Tudo isso ela pensava enquanto puxava os grampos, penteava os cabelos longos, encarava a pele sem cor. Enquanto despia a pele estampada, deixando-a cair aos pés. Enquanto isso fazia, pensava que deixara agora de ser coisa, que agora era novamente alguém. Até o por-do-sol de amanhã. 
Postagem mais recente Postagem mais antiga Página inicial

0 comentários: